segunda-feira, 8 de maio de 2017

A Noção do Tempo em "Millennium Mambo"




Millenium Mambo (2001) é um filme que olha para as relações humanas do século XXI; O filme é um ensaio sobre memórias fragmentadas e nossa relação com o passado.  Seria possível viver o presente desacorrentando-o do passado e do futuro?

À partir de uma ficção que se passa em Taiwan, cujo a protagonista Vicky (Qi Shu), nos convida a olhar para seu passado, relembrando fatos ocorridos em sua vida cerca dez anos antecedidos ao tempo da narração, que provém de um olhar de Vicky em 2011 (sendo que o universo cênico está em 2001). A protagonista é uma jovem que vive com seu namorado Hao-Hao e se encontra em uma crise existencial e amorosa. Todavia os atos do filme se desenrolam de modo entrelaçado, fractal. E o filme acaba por acompanhar algumas memórias fragmentadas da protagonista sob uma perspectiva melancólica que ela lança sobre seu próprio passado.

            É possível notar que a câmera do diretor taiwanês Hou Hsiao-Hsien, neste que é um de seus mais aclamados filmes, fica invariavelmente posicionada em um único ponto do ambiente, e movimentando-se lentamente, criando com isso uma mise en scene objetiva e distanciada, concentrada no ambiente, na atmosfera dos espaços. Durante as cenas, a câmera não altera muito sua angulação, faz apenas pequenos movimentos para enquadrar seus personagens, mesmo que eles saiam do enquadramento, a câmera não se precipita, apenas os segue devagar, e os aguarda, nos deixando sentir o ambiente, fazendo utilização de recursos sonoros para termos informações do extra campo. 

Hou Hsiao-Hsien não faz utilização de uma decupagem rítmica no filme. Os únicos cortes são entre uma cena e outra, no desenrolar de cada ato, ou seja, todas as cenas são filmadas em planos sequência, de uma câmera que se movimenta lentamente pelos cenários. Diferente de um cinema que busca potencializar o trivial, o cinema de Hsiao-Hsien assume o tom de testemunha atônita. A sua câmera não é estática, não procura ser contemplativa, mas atua como um "despotencializador da histeria" da imagem, o que o crítico Eduardo Valente vai chamar de  um comportamento orgânico:
"Como em tantos outros filmes de Hou, uma enorme parcela da força do filme se deve à câmera de Mark Lee Ping-Bing, e à sua capacidade de passear pelos espaços de maneira a tornar incrivelmente orgânicos os movimentos dos personagens em cena, parecendo sempre responder a eles como se houvesse um cordão umbilical entre a câmera e o mundo diante dela." (p.143)
A câmera em Millennium Mambo poetiza suas cenas com um tom levemente melancólico, onde parece querer tirar uma certa potência impactante de suas memórias, tornando tudo muito natural, orgânico. Essa naturalidade com que as coisas acontecem é uma marca da obra. As memórias de Vicky são em sua maioria cenas cotidianas,  e o diretor as filma de modo a nos transpor para acompanhá-las como se sua câmera fosse o próprio olhar fragmentado da memória de Vicky na década seguinte; imagens perdidas em seu inconsciente, porém dotadas de uma qualificação emocional melancólica.

A protagonista de Millennium Mambo presa em seu relacionamento abusivo em um retrato social das relações humanas, quando estamos juntos porém separados: cada um no seu canto cuidando de sua vida. É como se a câmera do filme se colocasse como uma organização fractal de suas memórias – tudo acontece no filme de modo natural e repetitivo, e não é possível perceber quanto tempo se passa entre um ato e outro. Não é possível diagnosticar racionalmente os motivos que a leva a viver a vida que escolheu; poucas coisas são certas: ela quer se divertir e está confusa e vendo sua vida passar diante de seus olhos. É um filme sobre o passado de uma jovem, todavia, não temos informações sobre seu passado antes daquilo que é retratado. Enquanto as imagens estão presas no verão de 2001, o voice over, ou seja, suas considerações, seu discurso, está dez anos à frente. É notório o tom melancólico em suas colocações, tratando-se de um olhar para um passado distante que ela recorda mas que, em poucos momentos, com alguns amigos, a protagonista esboça uma leveza, mas nunca uma leveza plena, mas uma diversão movida pela matéria, pelo consumo. Todavia, na maior parte do tempo ela está angustiada e sozinha. Olhando para o nada, vendo o tempo passar. Mas não é culpa apenas da desorganização. Não é como se a vida fosse se encaixar perfeitamente no momento em que nos organizamos, mas há algo em nós, algo que nos cerca e da qual a natureza não sabemos, que torna nossas vidas confusas e faz do tempo, um opressor misterioso.





 O primeiro plano do filme, de Vicky descendo em um túnel escuro com luzes neon no teto, além de funcionar como um prólogo simbólico daquilo que vem a ser a obra, também é um apontamento imagético, daquilo que o diretor propôs como sua leitura da experiência humana na sociedade contemporânea: temos a tecnologia e a alta capacidade de consumo a nosso favor, porém estamos sozinhos, perdidos, vagando pelo tempo, tomando caminhos tortuosos, atormentados pela culpa e pela solidão mas movidos pelo desejo; por um hedonismo altamente consumista e egoísta. E o que resta? Inevitavelmente, ao olharmos para trás e nos depararmos com nossas memórias fragmentadas e perdidas, percebemos a potência do tempo. Não há caminho traçado, não há destino e não há mistério possível de ser desvendado por nós, mas apenas um caminho errôneo e duvidoso a ser percorrido; preenchido pelo tédio e pela culpa dos arrependimentos, ainda que possamos levar uma vida de isolamento (com encontros) voltada a estimular nosso próprio prazer para aliviarmos nossa dor existencial. Mas nos perdemos no tempo. Como me sentirei amanhã ao olhar para minha vida hoje? Como me sinto hoje ao olhar para minha vida ontem?




Referências: Hou Hsiao-Hsien e o cinema de memórias fragmentadas. Rio de Janeiro: CCBB RJ, 2010


quarta-feira, 16 de novembro de 2016

O Anarquismo Ontológico de Hakim Bey

       Hakim Bey nessa seleção de escritos discorre um pensamento que transita por diversas correntes filosóficas modernas e orientais conceituando uma vertente que fora cunhada de "Anarquismo Ontológico", onde desenvolve sua terminologia provocadora.

     Por mais que a obra soe como uma espécie de manifesto em prol de um idealismo libertário, a todo tempo, ele admite sua própria contradição e assume a poética da dialética. Antes de tudo, ele propõe a organização caótica do Universo e, com isso, já se desprende de qualquer Verdade absoluta, assumindo o Caos. De todo modo, no desenvolvimento de sua retórica, nos mostra entender que trata-se de um caminho abstrato, onde nós como sociedade, buscamos entender quem somos e o que devemos fazer aqui. Enquanto isso, para entender parte do presente, é necessário olhar para trás e buscar entender os caminhos que nos levaram a desenvolver o status quo atual. Veremos então, a injustiça histórica do mundo dos homens. A guerra cíclica onde troca-se os 'tiranos' e os 'escravos',  e a esmagadora maioria sempre é de 'escravos'.

  A todo tempo ele constrói situações simbólicas em que ele nos convoca a buscar nossa autenticidade, e nossa graça: estar de acordo com a Natureza exige a retirada das viseiras sociais e a busca da emancipação autônoma.







Zonas Autônomas Temporárias // UTOPIAS PIRATAS & A PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA


"Levante e insurreição são palavras usadas pelos historiadores para caracterizar revoluções que fracassaram - movimentos que não chegaram a terminar seu ciclo, a trajetória padrão: revolução, reação, traição, a fundação de um Estado mais forte e ainda mais opressivo - a volta completa, o eterno retorno da história, uma e outra vez mais, até o ápice: botas marchando eternamente sobre o rosto da humanidade. [...] Um adeus a essa miserável paródia da roda kármica, histórica futilidade revolucionária. O slogan "Revolução!" transformou-se de sinal de alerta em toxina, uma maligna armadilha do destino, um pesadelo no qual, não importa o quanto lutamos, nunca nos livramos do maligno ciclo infinito que incuba o Estado, um Estado após o outro, cada "paraíso" governado por um anjo ainda mais cruel."

"Em resumo, não queremos dizer que a Z.A.T. (Zona Autônoma Temporária) é um fim em si mesmo, substituindo todas as outras formas de organização, táticas e objetivas. Nós a reconhecemos porque ela pode fornecer a qualidade do envolvimento associado ao levante sem necessariamente levar à violência e ao martírio. A Z.A.T., é uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se refazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la."

"Talvez algumas Z.A.T. tenham durado por gerações - como alguns enclaves rurais - porque passaram desapercebidas, porque nunca se relacionaram com o Espetáculo."

"A babilônia toma suas abstrações como realidades. É precisamente dentro dessa margem de erro que a Z.A.T. surge. A Z.A.T. deve ter como seu trunfo a invisibilidade - o Estado não pode reconhecê-la porque a História não a define. Assim que ela for nomeada, ela deve desaparecer, ela vai desaparecer, deixando para trás um invólucro invisível, porque é indefinível pelos termos do Espetáculo. Assim, a Z.A.T. se mostra uma boa tática para épocas onde o Estado é onipresente e todo-poderoso mas, ao mesmo tempo, repleto de rachaduras e fendas. Em suma, uma postura realista exije não apenas que desistamos de desejá-la. Levantes, sim - sempre que possível, até mesmo com o risco de violência. Os espasmos do Estado Simulado serão "espetaculares", mas na maioria dos casos a tática mais radical será a recusa de participar da violência espetacular, retirar-se da área de simulação, desaparecer."

"A tecnologia moderna, culminando no satélite espião, reduz esse tipo de autonomia a um sonho romântico. Chega de ilhas piratas! No futuro, talvez, essa mesma tecnologia, livre de todo controle político, possa tornar possível um mundo repleto de Zonas Autônomas. Mas, por enquanto, o conceito continua sendo apenas ficção científica - pura especulação."

"Dizer: "só serei livre quando todos os seres vivos forem livres", é simplesmente enfurnar-se numa espécie de estupor de nirvana, abdicar-se da nossa própria humanidade, definirmo-nos como fracassados."

"O conceito da Z.A.T. surge inicialmente de uma crítica à revolução, e de uma análise do levante. A revolução classifica o levante como um fracasso. Mas, para nós, um levante representa uma possibilidade muito mais interessante, do ponto de vista de uma psicologia de libertação, do que as "bem sucedidas" revoluções burguesas, comunistas, fascistas etc"

"Nacionalidade é o princípio mais importante do conceito de "governo" - é a apoteose do "gangsterismo territorial". Nenhum centímetro quadrado da Terra hoje está livre da polícia ou dos impostos... em teoria."

Hakim Bey faz também uma comparação da cultura das Z.A.T. com algumas culturas de povos ancestrais - a quebra da estrutura de um "núcleo" familiar - um "bando" que divide afinidades, não-pertencentes a uma hierarquia maior, mas um padrão horizontalizado de costumes, parentescos, contratos, afinidades espirituais etc.


"A morte de Deus", que de certo modo representou a descentralização do "projeto europeu", abriu a possibilidade de uma visão de mundo pós-ideológica e multifacetada, capaz de se mover, de forma "desenraizada", da filosofia para o mito tribal, da ciência natural para o Taoísmo. Capaz de enxergar, pela primeira vez através de olhos caleidoscópicos como os olhos de algum inseto dourado, cada faceta apresentando a concepção de outro mundo inteiramente diverso. Mas essa visão foi alcançada às custas de se viver numa época na qual a velocidade e o fetichismo da mercadoria criaram uma unidade tirânica e falsa que tende a ofuscar toda a diversidade cultural e toda a individualidade para que "todo lugar seja igual ao outro". Este paradoxo, cria também "ciganos", viajantes psíquicos guiados pelo desejo ou pela curiosidade, errantes com laços de lealdade frouxos, desligados de qualquer local ou tempo determinado, em busca da diversidade e aventura... Essa descrição engloba não apenas artistas e intelectuais classe x, como também trabalhadores imigrantes, refugiados, os "sem teto", turistas e aqueles que vivem em trailers - assim como pessoas que viajam na internet, ou aqueles que "viajaram demais", até nós mesmos, vivendo em nossos automóveis, em nossas férias, aparelhos de TV, livros, filmes, trocando de emprego, mudando de "estilo de vida", de religião... O nomadismo psíquico como uma tática, aquilo que Deleuze e Guattari metaforicamente chamam de "máquina de guerra", muda o paradoxo do modo passivo para um modo ativo. Os últimos espasmos de "Deus" no seu leito de morte vêm se arrastando por tanto tempo - nas formas do capitalismo, fascismo, comunismo etc - que ainda existe muita "destruição criativa" para ser executada por comando apaches pós-bakunianos e pós-nietzschianos - sentem tanto o desejo quanto a necessidade de Z.A.T., acampamentos de tendas negras sob as estrelas do deserto, inter-zonas, oásis fortificados escondidos nas rotas das caravanas secretas, trechos de selva e sertões liberados, áreas proibidas, mercados negros e bazares underground. Esses nômades orientam seu percurso por estrelas estranhas, que podem ser núcleos luminosos de dados no ciberespaço, ou, talvez, alucinações.


====



CAOS // Terrorismo poético e outros crimes exemplares


"O Caos nunca morreu."

"O Caos é anterior a todos os princípios de ordem e entropia, não é nem um deus nem uma larva, seu desejos primais englobam e definem todas coreografias possíveis."
"Tudo na Natureza é perfeitamente real: não há absolutamente nada com o que se preocupar. As correntes da Lei não foram apenas quebradas, elas nunca existiram. Demônios nunca vigiaram estrelas."
"Ouça, foi isso que aconteceu: eles mentiram, venderam-lhe idéias de bem e mal, infundiram-lhe a desconfiança de seu próprio corpo e a vergonha pela sua condição de profeta do Caos."
"Não há transformação, revolução, luta, caminho. Você já é o monarca de sua própria pele." 
"Agentes do Caos lançam olhares ardentes a qualquer coisa ou pessoa capaz de suportar ser testemunha de sua condição, sua febre por lux et voluptas. Estou desperto apenas no que amo e até o limite do terror – todo o resto é apenas mobília coberta e anestesia diária."
"Avatares do Caos agem como espiões, sabotadores, criminosos do Amor Louco, nem generosos nem egoístas, acessíveis como crianças, semelhantes a bárbaros, perseguidos por obsessões, desempregados, sexualmente perturbados, anjos terríveis, espelhos para a contemplação, olhos que lembram flores, piratas de todos os signos e sentidos."
"Arrombe apartamentos, mas, em vez de roubar, deixe objetos poético-terroristas. Sequestre alguém e o faça feliz." 
"A reação do público ou choque-estético produzido pelo Terrorismo Poético tem de ser uma emoção menos tão forte quanto o terror – profunda repugnância, tesão sexual, temor supersticioso, súbitas revelações intuitivas, angustia dadaísta – não importa se o Terrorismo Poético é dirigido a apenas uma ou varias pessoas, se é “assinado” ou anônimo: se não mudar a vida de alguém (além da do artista), ele falhou." 
"Não faça Terrorismo Poético para outros artistas, faça-o para aquelas pessoas que não perceberão (pelo menos não imediatamente) que aquilo que você fez é arte. Evite categorias artísticas reconhecíveis, evite politicagem, não argumente, não seja sentimental. Seja brutal, assuma riscos, vandalize apenas o que deve ser destruído, faça algo de que as crianças se lembrarão por toda a vida – mas não seja espontâneo a menos que a musa do Terrorismo Poético tenha se apossado de você."

"O Amor Louco não quer se alistar no exército de ninguém, não toma partido, não reclama, não explica, nunca vota e nunca paga impostos."

"Nem pense em escrever para Crianças Selvagens. Elas pensam em imagens - para elas a prosa é um código ainda não inteiramente digerido, não-confiável."

"Abraçar a desordem como fonte de estilo e como armazém de volúpia; nossa estética conspiratória, nossa espionagem lunática - assemelhando-se a uma criança de 10 anos."

"A Arte-Sabotagem é o lado negro do Terrorismo Poético. Criação através da destruição, mas não podem servir a nenhum partido ou niilismo, nem mesmo à própria arte. A Arte-Sabotagem vai além da paranóia, além da desconstrução."
"Esmague os símbolos do império, mas não o faça em nome de nada que não seja a busca do coração pela graça."

"Cada um dos que adentram no reino do Imã-de-si-próprio transforma-se num sultão de revelação inversa, num monarca da anulação."
"Cada consciência iluminada é um imperador, cuja única forma de reino é não fazer nada que possa atrapalhar a espontaneidade da Natureza."
"A Lei espera até que você tropece num modo de ser, uma alma diferente do padrão de "carne apropriada para consumo aprovada pelo sistema de inspeção federal" - e assim que você começa a agir de acordo com a natureza, a lei dos homens te agarra e te estrangula - portanto, não dê uma de mártir abençoado e liberal da classe média - aceite o fato de que você é um criminosos e esteja preparado para isso."
"PARADOXO: Adotar o Caos não é escorregar para a entropia, mas emergir para uma energia semelhante à das estrelas, uma graça espontânea - uma organização orgânica-espontânea."
"Depois do Caos vem o Eros - princípio da ordem implícito do vazio do UNO. O amor é estrutura, sistema, o único código não contaminado pela escravidão e pelo sono drogado."
"Não apenas sobreviva enquanto espera que a revolução de alguém ilumine suas idéias, não se aliste nos exércitos - aja como se já fosse livre, calcule as probabilidades, pule fora, lembre-se das regras - fume maconha. Todo homem tem sua própria vinha e sua fogueira - carregue seu passaporte mouro com orgulho, não fique parado no meio do fogo cruzado, proteja-se; mas arrisque-se, dance antes que seja calcificado."
"O Universo quer brincar. Aqueles que por ganância espiritual se recusam a jogar e escolhem a pura contemplação negligenciam sua humanidade - aqueles que evitam a brincadeira por causa de uma angústia tola, aqueles que hesitam, desperdiçam sua oportunidade de divindade - aqueles que fabricam para si máscaras cegas de idéias e vagam por aí à procura de uma prova para sua própria solidez acabam vendo o mundo através dos olhos de um morto."
"O Anarquismo Ontológico tende a discordar apenas da total quietude do Taoísmo. Em nosso mundo o Taos tem sido destituído por jovens "deuses", moralistas, falocratas, padres e banqueiros. Se a rebelião provar-se impossível, ao menos alguma guerra clandestina deve ser iniciada" 
"É verdade que nesse mito alguns discípulos aspirantes podem receber o comando de arremessarem-se do alto das muralhas para a escuridão, mas é também verdade que alguns deles vão aprender a voar como feiticeiros." 
"A feitiçaria funciona criando ao redor de si um espaço físico, psíquico com aberturas para um espaço de expressão sem barreiras - a metamorfose do lugar cotidiano numa esfera angelical. Isso envolve a manipulação de símbolos, tratados tanto quanto reais, irreais, como as palavras." 
"Um poema deve agir como um feitiço e vice-versa. Os símbolos devem provocar incidentes como epifanias particulares" 

"A QUALIDADE DA PERCEPÇÃO DEFINE O MUNDO"




BEY, Hakim. TAZ. Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad, 2001. 

BEY, Hakim. Caos. Terrorismo poético e outros crimes exemplares. São Paulo: Conrad, 2003.


quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Deus e o diabo na terra do Sol




A idéia da crueza; do seco.
É interessante perceber como Glauber Rocha retrata o Brasil, ou neste filme, especificamente o sertão, como um duro deserto – e essa geografia acaba por influenciar os indivíduos e sua cultura. Glauber explora a religiosidade, o cangaço, o coronelismo, mas acima de tudo a angústia do oprimido.

"Enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como um sintoma trágico, mas apenas como um dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado, nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino."(p.53)*

É possível encarar o filme como uma espécie de faroeste musical nordestino. O próprio Glauber admitiu a influência Fordiana, mas além disso ele tem uma relação mais Eisensteiniana, formalista, com as imagens.
 A obra é narrada musicalmente; os personagens e a estória são apresentados pelas canções, com as letras escritas pelo próprio Glauber e musicadas pelo Sérgio Ricardo, influenciadas pela literatura de cordel e a música regional nordestina.

"Aqui só valem duas leis: do governo e da bala"


São Sebastião, em um lugar onde só havia terra, plantas secas e pedras, promete um outro lugar em que daria comida na mesma abundância que ali eles dispunham de pedras e terra. Sebastião é retratado como uma espécie de Antônio Conselheiro e o massacre na escadaria de pedras é uma menção a Canudos. É angustiante mas interessantíssimo observarmos a essa multidão de pessoas em estado de extrema pobreza, movidas apenas pela fé, seguindo os delírios daquele que chamam de Santo. Tanto Sebastião, quanto seus fiéis, são sonhadores religiosos e pecaminosos. Baseados na Bíblia, eles oferecem a Deus a morte de um bebê, um de seus filhos, em troca de algum milagre ou redenção divina. Glauber não tem um olhar católico, nem busca romantizar a fé. O Santo expõe seus fiéis à dor extrema. 

Um cinema Brechtiano, onde buscou-se o excesso da teatralidade, tanto na parte gestual quanto expressiva - Glauber queria um embate, um confronto da representação causando uma histeria, um despertar ao espectador. Reza a lenda que a idéia do filme surgiu como uma resposta para o filme de Lima Barreto "O cangaceiro" (1953) - Glauber era grande crítico da Companhia Cinematográfica da Vera Cruz e teria ficado decepcionado com a abordagem estética e o olhar lançado aos temas do cangaço e do sertão no filme de 1953.

"Foi seu próprio miserabilismo, que antes era escrito pela literatura em 1930, foi agora fotografado pelo cinema de 1960; e se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político."(p.53)*
"Do Cinema Novo: uma estética da violência, antes de ser primitiva, é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue armas, o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse o argelino." (p.56)*

Deus e o diabo na terra do Sol é uma obra que preza pela complexidade e pelas contradições. As provocações que o filme traz são de um viés iconoclasta. E além disso, nos leva para um ponto de vista onde tudo é muito complexo para ser compreendido na totalidade, e talvez seja mesmo tudo contraditório. É Deus e é Diabo. De todo modo, deixemo-nos dar palpites sobre as Verdades. São apenas palpites. Tudo está sobre constante crítica.

"Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro não entenderam. Para o europeu, é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro é uma vergonha nacional."(p.55)*

 A relação patrão-empregado, é demonstrada pelo coronel e Manoel, e é justamente essa relação que dá início a desgraça da vida do protagonista que já era miserável. 
 O cego violeiro faz a ponte entre Antônio das Mortes e os cangaceiros. Antônio das Mortes por sua vez, tenta mostrar que é apenas um homem sem escolhas. Ele não tem escolhas pois é um sertanejo sofredor e arranjou um jeito na vida tirando a vida das pessoas. E ele tenta lidar com essa culpa e sua religiosidade. Mas Antônio é contratado por ninguém menos que a Igreja; O filme critica a Igreja católica como um espaço não verdadeiramente popular, e é ela quem encomenda o massacre de São Sebastião e seu povo. 
Corisco é poesia pura. A poética da espada em frente seu rosto, e o modo como a câmera se posiciona dividindo simétricamente o rosto do personagem, este, acaba por interpretar duas entidades ao mesmo tempo; de um lado ele é Corisco, do outro incorpora Lampião. 
A relação entre Rosa e Manoel é também interessantíssima. Por um lado eles são uma espécie de porto-seguro um para o outro, mas Glauber evidencia a relação desigual entre eles. Os protagonistas vacilantes a todo momento, onde definitivamente Glauber evita cair em um maniqueísmo - Rosa trai o marido e logo depois jura amor e promete dar a ele um filho, e este, por sua vez, abandona sua mulher arrasada três vezes ao longo da estória, incluindo na bela sequência final, dos dois correndo até que o sertão vire mar. Talvez a única coisa que não seja ambígua no filme seja o sertão. Esse parece ser apenas duro.

Um filme sobre a fé avacalhada, a seca, a miséria, e o espírito guerreiro do povo sertanejo.

"Homem nessa terra só tem validade quando pega na arma"







*Trechos do texto "Estética da Fome" escrito por Glauber.
**Resenha inspirada por uma aula dada pelo professor especialista em cinema brasileiro Ataídes Braga.

sábado, 16 de julho de 2016

A meia noite levarei sua alma (1964)




Neste clássico brasileiro Mojica começa o filme colocando seu personagem Zé do Caixão (em sua primeira aparição cinematográfica) fazendo ao púlbico uma das perguntas filosóficas mais importantes: o que é a vida? E ele mesmo nos dá sua resposta irônica e niilista: é o princípio da morte. Ele continua a fazer provocações até que nos revela a natureza de seu desejo: "o que é o sangue? É a razão da existência".



Zé do caixão é uma espécie de "alma do dêmonio" que aterroriza uma cidadezinha do interior, que como de praxe, é um lugar altamente religioso. Ele vai então procurando uma espécie de esposa perfeita de acordo com sua vida bizarra. Essas pessoas dessa cidadezinha passam então a serem uma espécie de comunidade-passiva perante os desejos sangrentos e terríveis desse ser.

Em seu cinema, Mojica se coloca fazendo todo o tipo de maldades, abusos, assédios físicos e morais. Ele estupra mulheres, cega homens, os afoga e os maltrata de várias maneiras diferentes. Há um momento do filme, em duas cenas que se seguem, ele aparece em dois bares diferentes e literalmente "toca o terror" nessas pessoas. E em ambos bares haviam pelo menos umas oito pessoas: todas assistindo passivamente ao terror. Todas condizentes. E o mais interessante, e talvez um dos pontos principais dos quais eu vi na obra do José Mojica Marins, é exatamente as relações entre a passividade, o medo, e a liberdade e a loucura. Mojica nos mostra com o imaginário dessas pessoas influencia, de maneira tão forte, suas vidas. Essas pessoas, mesmo em um número muito maior, obviamente, podendo organizar qualquer tipo de linchamento contra esse assassino, essas pessoas são tomadas pelo medo, tornando-se assim, completamente passivas. Para eles esse ser que chegara tem algo além deles; algo que está além do próprio entendimento deles, mas que de toda forma é algo que os aterroriza a ponto de transformá-los em escravos. Em um diálogo Zé chega a afirmar para uma mulher: "os homens dessa cidade são todos uns covardes. Não fazem nada, são uns bostas."

 Na verdade o que Zé do Caixão faz é uma espécie de sarcasmo sádico contra esse tipo de religioso, e uma provocação direta a passividade e o medo que tomam conta dessas pessoas. O personagem então, se aproveita para que, com toda a liberdade possível, possa satisfazer-se das piores vontades. O desfecho então, não poderia ser diferente: o surto. Mojica faz valer a velha teoria de que um sujeito completamente desregrado, não saberá lidar com sua liberdade, perderá-se em suas pulsões e enlouquecerá. O próprio Zé do Caixão enforca-se na corda da liberdade. Durante o filme inteiro, é sustentada a idéia de que esse personagem é um ser que está acima do medo. Não que necessariamente haja algo de metafísico nessa discussão, mas em seu próprio modo de ser, Zé do Caixão não teme nada nem ninguém. Mas é exatamente para ele mesmo que ele perde: Mojica faz questão de colocar seu personagem isolado em uma mata, e demonstra como a paranóia se desenrola e enlouque-se o sujeito: ele ouve vozes, sente estar sendo perseguido. Mojica então quebra a lógica construída ao longo do filme: oras, esse personagem não é o filho do diabo, é apenas um maluco. Não se trata de alguem acima dos mortais, mas de um maluco dos mais doidos e sanguinários.

Zé do caixão em uma cena vai, literalmente, "tirar onda" com os mortos. Vai ao cemitério rir de quem morreu e bradar: "vocês não podem fazer nada pois estão mortos. Já eu estou vivo!" Em vários momentos do filme ele faz questão de dizer "estou vivo". Analisando principalmente os diálogos, o filme pra mim se tornou uma espécie de ode thrash à vida e uma provocação ao medo e a passividade contra a falácia da liberdade.


Filme completo



sexta-feira, 8 de julho de 2016

Mon Oncle de Jacques Tati




 “As cores imprimem no nosso ser sentimentos e impressões, agem sobre nossa alma, sobre nosso estado de espírito; podem servir, portanto, para o desenvolvimento da ação, participando diretamente na criação da atmosfera, do clima psicológico e dramático[…]” BETTON (1987, p. 60-61)
Uma matilha de cachorros de rua é quem acompanha os personagens numa espécie de olhar subversivo. O filme começa com uma construção. Visualmente, os primeiros letreiros estão praticamente inclusos no universo do filme, tanto os primeiros, cinzas, ao lado da construção, quanto o próprio ”letreiro” principal do filme, que é escrito em giz na parede de pedras. Cachorros mexendo no lixo na rua - os prédios pintados de cinza. Tudo ao redor é cinza. As superfícies planas; paredes, portas e mesas lisas e cinzas. Tati acompanha os cachorros até a casa: apenas um dos cachorros entra, os outros ficam apenas olhando de fora: esse é um espaço privado para poucos.
Já a casa de Hulot, é um organismo mais humilde, apesar de tambem cinza, é repleto de adereços, objetos e animais que dão uma certa pulsão dentro da casa. É interessante perceber como os comôdos são interligados, onde Hulot passeia com facilidade por todos os comodos em um plano emblemático, quebrando a ideia de separaçao, individualismo, e segregação que a casa moderna passa.

Uma das questões mais importantes do filme são levantadas através de dois objetos. A relação que se dá entre a campainha e o peixe, diz respeito a uma crítica e uma sátira enorme. Quando alguém toca a campainha, a mulher corre quase automaticamente para ligar o peixe-fonte, que é ligada de acordo com a importância de quem chega, ou seja, o peixe só começa a jorrar água quando há alguém para olhá-lo, alguém que mereça essa certa ostentação, onde por isso, aquela seria uma casa, supostamente, mais luxuosa (para os outros). Quando a visita deixa a casa, a dona da casa, de modo naturalizado, desliga a fonte. Quando recebe visitas, a própria casa se altera, e é modificada visualmente, como um organismo-mecânico, cujo a finalidade é, obviamente, além de abrigar a família, algo mais, que passa por questões de uma necessidade de ostentar uma imagem de luxo. Praticamente todas as paredes no universo do filme são cinzas. O que Tati faz com esses personagens pequeno-burgueses chega a ser sutilmente incômodo. É mostrar pra nós, algo que nem eles mesmos sabem.

O próprio Hulot, como personagem, pensando a partir do figurino, está sempre portando um guarda chuva, um característico cachimbo, uma jaqueta enorme e um chapéu: por um lado, pela parte do vestuário, ele sustenta uma postura de figura séria, madura. Postura essa que é desconstruída com seu modo em lidar com as pessoas e com o mundo. De um modo quase infantil; talvez até por isso Hulot seja mostrado quase como um contra-corrente, um à parte.

"Tati estabelece em Meu Tio uma crítica ao culto à modernidade tecnológica já vigente na década de 50. O título faz referência ao único membro da família que não se encaixa nessa mentalidade corrente na família Arpel: o simpático tio Hulot, interpretado pelo próprio Tati. Hulot, solteirão e desempregado, passa a ser admirado por seu sobrinho Gérard justamente por estar fora dos padrões impostos pela sociedade. E isso provoca, no decorrer da trama, uma crise de ciúmes em Charles, pai de Gérard." Sabine Righetti

Uma das brincadeiras mais emblemáticas que Tati faz no filme é o uso do caminho de pedras no chão e o modo com que as pessoas caminham sobre ele. Num primeiro momento, duas madames vão de braços abertos, enquanto caminham de maneira quase robótica sobre o passeio.
As duas casas acabam por se tornar as peças mais importantes do filme de Tati.






Apesar de um aparente desprezo pela família pequeno-burguesa, contida em todas essas críticas, por outro lado, em outros detalhes, Tati demonstra ter feito uma obra com alto grau de opacidade, tendo em vista que, se por um lado, ele automatiza os personagens, em outros momentos eles são retratados de maneira mais humana, como na cena quando o pai chega em casa do trabalho a noite, ele tem de gritar para a esposa após tocar a campainha “sou eu, não precisa ligar!“ – então, no fim das contas, Tati demonstra ter um apego pela contradição, demonstrando cenários e personagens multifacetados que se por um lado tendem a ostentar uma postura de organização, também trazem idéias de solidão e da importância que o sujeito que dá para o outro. Se por um lado adotam um ar de grandeza, por outro lado assumem seu lado patético. Talvez a provocação principal do filme seja afirmar que as pessoas vivam, assumidamente ou não, preocupadas com o outro. Ou talvez então seja a denúncia de que estejamos nos automatizando, perdendo nossa autenticidade, e com isso, nosso lado humano. No final, para Tati, o indivíduo é tão frio e automático quanto a máquina, assim como a máquina é tão patética e sem importância quanto o indivíduo. Mas ambos são organizados e regidos por forças que eles mesmos não compreendem.