quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Deus e o diabo na terra do Sol




A idéia da crueza; do seco.
É interessante perceber como Glauber Rocha retrata o Brasil, ou neste filme, especificamente o sertão, como um duro deserto – e essa geografia acaba por influenciar os indivíduos e sua cultura. Glauber explora a religiosidade, o cangaço, o coronelismo, mas acima de tudo a angústia do oprimido.

"Enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como um sintoma trágico, mas apenas como um dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado, nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino."(p.53)*

É possível encarar o filme como uma espécie de faroeste musical nordestino. O próprio Glauber admitiu a influência Fordiana, mas além disso ele tem uma relação mais Eisensteiniana, formalista, com as imagens.
 A obra é narrada musicalmente; os personagens e a estória são apresentados pelas canções, com as letras escritas pelo próprio Glauber e musicadas pelo Sérgio Ricardo, influenciadas pela literatura de cordel e a música regional nordestina.

"Aqui só valem duas leis: do governo e da bala"


São Sebastião, em um lugar onde só havia terra, plantas secas e pedras, promete um outro lugar em que daria comida na mesma abundância que ali eles dispunham de pedras e terra. Sebastião é retratado como uma espécie de Antônio Conselheiro e o massacre na escadaria de pedras é uma menção a Canudos. É angustiante mas interessantíssimo observarmos a essa multidão de pessoas em estado de extrema pobreza, movidas apenas pela fé, seguindo os delírios daquele que chamam de Santo. Tanto Sebastião, quanto seus fiéis, são sonhadores religiosos e pecaminosos. Baseados na Bíblia, eles oferecem a Deus a morte de um bebê, um de seus filhos, em troca de algum milagre ou redenção divina. Glauber não tem um olhar católico, nem busca romantizar a fé. O Santo expõe seus fiéis à dor extrema. 

Um cinema Brechtiano, onde buscou-se o excesso da teatralidade, tanto na parte gestual quanto expressiva - Glauber queria um embate, um confronto da representação causando uma histeria, um despertar ao espectador. Reza a lenda que a idéia do filme surgiu como uma resposta para o filme de Lima Barreto "O cangaceiro" (1953) - Glauber era grande crítico da Companhia Cinematográfica da Vera Cruz e teria ficado decepcionado com a abordagem estética e o olhar lançado aos temas do cangaço e do sertão no filme de 1953.

"Foi seu próprio miserabilismo, que antes era escrito pela literatura em 1930, foi agora fotografado pelo cinema de 1960; e se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político."(p.53)*
"Do Cinema Novo: uma estética da violência, antes de ser primitiva, é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue armas, o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse o argelino." (p.56)*

Deus e o diabo na terra do Sol é uma obra que preza pela complexidade e pelas contradições. As provocações que o filme traz são de um viés iconoclasta. E além disso, nos leva para um ponto de vista onde tudo é muito complexo para ser compreendido na totalidade, e talvez seja mesmo tudo contraditório. É Deus e é Diabo. De todo modo, deixemo-nos dar palpites sobre as Verdades. São apenas palpites. Tudo está sobre constante crítica.

"Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro não entenderam. Para o europeu, é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro é uma vergonha nacional."(p.55)*

 A relação patrão-empregado, é demonstrada pelo coronel e Manoel, e é justamente essa relação que dá início a desgraça da vida do protagonista que já era miserável. 
 O cego violeiro faz a ponte entre Antônio das Mortes e os cangaceiros. Antônio das Mortes por sua vez, tenta mostrar que é apenas um homem sem escolhas. Ele não tem escolhas pois é um sertanejo sofredor e arranjou um jeito na vida tirando a vida das pessoas. E ele tenta lidar com essa culpa e sua religiosidade. Mas Antônio é contratado por ninguém menos que a Igreja; O filme critica a Igreja católica como um espaço não verdadeiramente popular, e é ela quem encomenda o massacre de São Sebastião e seu povo. 
Corisco é poesia pura. A poética da espada em frente seu rosto, e o modo como a câmera se posiciona dividindo simétricamente o rosto do personagem, este, acaba por interpretar duas entidades ao mesmo tempo; de um lado ele é Corisco, do outro incorpora Lampião. 
A relação entre Rosa e Manoel é também interessantíssima. Por um lado eles são uma espécie de porto-seguro um para o outro, mas Glauber evidencia a relação desigual entre eles. Os protagonistas vacilantes a todo momento, onde definitivamente Glauber evita cair em um maniqueísmo - Rosa trai o marido e logo depois jura amor e promete dar a ele um filho, e este, por sua vez, abandona sua mulher arrasada três vezes ao longo da estória, incluindo na bela sequência final, dos dois correndo até que o sertão vire mar. Talvez a única coisa que não seja ambígua no filme seja o sertão. Esse parece ser apenas duro.

Um filme sobre a fé avacalhada, a seca, a miséria, e o espírito guerreiro do povo sertanejo.

"Homem nessa terra só tem validade quando pega na arma"







*Trechos do texto "Estética da Fome" escrito por Glauber.
**Resenha inspirada por uma aula dada pelo professor especialista em cinema brasileiro Ataídes Braga.

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