sexta-feira, 8 de julho de 2016

Mon Oncle de Jacques Tati




 “As cores imprimem no nosso ser sentimentos e impressões, agem sobre nossa alma, sobre nosso estado de espírito; podem servir, portanto, para o desenvolvimento da ação, participando diretamente na criação da atmosfera, do clima psicológico e dramático[…]” BETTON (1987, p. 60-61)
Uma matilha de cachorros de rua é quem acompanha os personagens numa espécie de olhar subversivo. O filme começa com uma construção. Visualmente, os primeiros letreiros estão praticamente inclusos no universo do filme, tanto os primeiros, cinzas, ao lado da construção, quanto o próprio ”letreiro” principal do filme, que é escrito em giz na parede de pedras. Cachorros mexendo no lixo na rua - os prédios pintados de cinza. Tudo ao redor é cinza. As superfícies planas; paredes, portas e mesas lisas e cinzas. Tati acompanha os cachorros até a casa: apenas um dos cachorros entra, os outros ficam apenas olhando de fora: esse é um espaço privado para poucos.
Já a casa de Hulot, é um organismo mais humilde, apesar de tambem cinza, é repleto de adereços, objetos e animais que dão uma certa pulsão dentro da casa. É interessante perceber como os comôdos são interligados, onde Hulot passeia com facilidade por todos os comodos em um plano emblemático, quebrando a ideia de separaçao, individualismo, e segregação que a casa moderna passa.

Uma das questões mais importantes do filme são levantadas através de dois objetos. A relação que se dá entre a campainha e o peixe, diz respeito a uma crítica e uma sátira enorme. Quando alguém toca a campainha, a mulher corre quase automaticamente para ligar o peixe-fonte, que é ligada de acordo com a importância de quem chega, ou seja, o peixe só começa a jorrar água quando há alguém para olhá-lo, alguém que mereça essa certa ostentação, onde por isso, aquela seria uma casa, supostamente, mais luxuosa (para os outros). Quando a visita deixa a casa, a dona da casa, de modo naturalizado, desliga a fonte. Quando recebe visitas, a própria casa se altera, e é modificada visualmente, como um organismo-mecânico, cujo a finalidade é, obviamente, além de abrigar a família, algo mais, que passa por questões de uma necessidade de ostentar uma imagem de luxo. Praticamente todas as paredes no universo do filme são cinzas. O que Tati faz com esses personagens pequeno-burgueses chega a ser sutilmente incômodo. É mostrar pra nós, algo que nem eles mesmos sabem.

O próprio Hulot, como personagem, pensando a partir do figurino, está sempre portando um guarda chuva, um característico cachimbo, uma jaqueta enorme e um chapéu: por um lado, pela parte do vestuário, ele sustenta uma postura de figura séria, madura. Postura essa que é desconstruída com seu modo em lidar com as pessoas e com o mundo. De um modo quase infantil; talvez até por isso Hulot seja mostrado quase como um contra-corrente, um à parte.

"Tati estabelece em Meu Tio uma crítica ao culto à modernidade tecnológica já vigente na década de 50. O título faz referência ao único membro da família que não se encaixa nessa mentalidade corrente na família Arpel: o simpático tio Hulot, interpretado pelo próprio Tati. Hulot, solteirão e desempregado, passa a ser admirado por seu sobrinho Gérard justamente por estar fora dos padrões impostos pela sociedade. E isso provoca, no decorrer da trama, uma crise de ciúmes em Charles, pai de Gérard." Sabine Righetti

Uma das brincadeiras mais emblemáticas que Tati faz no filme é o uso do caminho de pedras no chão e o modo com que as pessoas caminham sobre ele. Num primeiro momento, duas madames vão de braços abertos, enquanto caminham de maneira quase robótica sobre o passeio.
As duas casas acabam por se tornar as peças mais importantes do filme de Tati.






Apesar de um aparente desprezo pela família pequeno-burguesa, contida em todas essas críticas, por outro lado, em outros detalhes, Tati demonstra ter feito uma obra com alto grau de opacidade, tendo em vista que, se por um lado, ele automatiza os personagens, em outros momentos eles são retratados de maneira mais humana, como na cena quando o pai chega em casa do trabalho a noite, ele tem de gritar para a esposa após tocar a campainha “sou eu, não precisa ligar!“ – então, no fim das contas, Tati demonstra ter um apego pela contradição, demonstrando cenários e personagens multifacetados que se por um lado tendem a ostentar uma postura de organização, também trazem idéias de solidão e da importância que o sujeito que dá para o outro. Se por um lado adotam um ar de grandeza, por outro lado assumem seu lado patético. Talvez a provocação principal do filme seja afirmar que as pessoas vivam, assumidamente ou não, preocupadas com o outro. Ou talvez então seja a denúncia de que estejamos nos automatizando, perdendo nossa autenticidade, e com isso, nosso lado humano. No final, para Tati, o indivíduo é tão frio e automático quanto a máquina, assim como a máquina é tão patética e sem importância quanto o indivíduo. Mas ambos são organizados e regidos por forças que eles mesmos não compreendem.

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