Hakim Bey nessa seleção de escritos discorre um pensamento que transita por diversas correntes filosóficas modernas e orientais conceituando uma vertente que fora cunhada de "Anarquismo Ontológico", onde desenvolve sua terminologia provocadora.
Por mais que a obra soe como uma espécie de manifesto em prol de um idealismo libertário, a todo tempo, ele admite sua própria contradição e assume a poética da dialética. Antes de tudo, ele propõe a organização caótica do Universo e, com isso, já se desprende de qualquer Verdade absoluta, assumindo o Caos. De todo modo, no desenvolvimento de sua retórica, nos mostra entender que trata-se de um caminho abstrato, onde nós como sociedade, buscamos entender quem somos e o que devemos fazer aqui. Enquanto isso, para entender parte do presente, é necessário olhar para trás e buscar entender os caminhos que nos levaram a desenvolver o status quo atual. Veremos então, a injustiça histórica do mundo dos homens. A guerra cíclica onde troca-se os 'tiranos' e os 'escravos', e a esmagadora maioria sempre é de 'escravos'.
A todo tempo ele constrói situações simbólicas em que ele nos convoca a buscar nossa autenticidade, e nossa graça: estar de acordo com a Natureza exige a retirada das viseiras sociais e a busca da emancipação autônoma.
Zonas Autônomas Temporárias // UTOPIAS PIRATAS & A PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA
"Levante e insurreição são palavras usadas pelos historiadores para caracterizar revoluções que fracassaram - movimentos que não chegaram a terminar seu ciclo, a trajetória padrão: revolução, reação, traição, a fundação de um Estado mais forte e ainda mais opressivo - a volta completa, o eterno retorno da história, uma e outra vez mais, até o ápice: botas marchando eternamente sobre o rosto da humanidade. [...] Um adeus a essa miserável paródia da roda kármica, histórica futilidade revolucionária. O slogan "Revolução!" transformou-se de sinal de alerta em toxina, uma maligna armadilha do destino, um pesadelo no qual, não importa o quanto lutamos, nunca nos livramos do maligno ciclo infinito que incuba o Estado, um Estado após o outro, cada "paraíso" governado por um anjo ainda mais cruel."
"Em resumo, não queremos dizer que a Z.A.T. (Zona Autônoma Temporária) é um fim em si mesmo, substituindo todas as outras formas de organização, táticas e objetivas. Nós a reconhecemos porque ela pode fornecer a qualidade do envolvimento associado ao levante sem necessariamente levar à violência e ao martírio. A Z.A.T., é uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se refazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la."
"Talvez algumas Z.A.T. tenham durado por gerações - como alguns enclaves rurais - porque passaram desapercebidas, porque nunca se relacionaram com o Espetáculo."
"A babilônia toma suas abstrações como realidades. É precisamente dentro dessa margem de erro que a Z.A.T. surge. A Z.A.T. deve ter como seu trunfo a invisibilidade - o Estado não pode reconhecê-la porque a História não a define. Assim que ela for nomeada, ela deve desaparecer, ela vai desaparecer, deixando para trás um invólucro invisível, porque é indefinível pelos termos do Espetáculo. Assim, a Z.A.T. se mostra uma boa tática para épocas onde o Estado é onipresente e todo-poderoso mas, ao mesmo tempo, repleto de rachaduras e fendas. Em suma, uma postura realista exije não apenas que desistamos de desejá-la. Levantes, sim - sempre que possível, até mesmo com o risco de violência. Os espasmos do Estado Simulado serão "espetaculares", mas na maioria dos casos a tática mais radical será a recusa de participar da violência espetacular, retirar-se da área de simulação, desaparecer."
"A tecnologia moderna, culminando no satélite espião, reduz esse tipo de autonomia a um sonho romântico. Chega de ilhas piratas! No futuro, talvez, essa mesma tecnologia, livre de todo controle político, possa tornar possível um mundo repleto de Zonas Autônomas. Mas, por enquanto, o conceito continua sendo apenas ficção científica - pura especulação."
"Dizer: "só serei livre quando todos os seres vivos forem livres", é simplesmente enfurnar-se numa espécie de estupor de nirvana, abdicar-se da nossa própria humanidade, definirmo-nos como fracassados."
"O conceito da Z.A.T. surge inicialmente de uma crítica à revolução, e de uma análise do levante. A revolução classifica o levante como um fracasso. Mas, para nós, um levante representa uma possibilidade muito mais interessante, do ponto de vista de uma psicologia de libertação, do que as "bem sucedidas" revoluções burguesas, comunistas, fascistas etc"
"Nacionalidade é o princípio mais importante do conceito de "governo" - é a apoteose do "gangsterismo territorial". Nenhum centímetro quadrado da Terra hoje está livre da polícia ou dos impostos... em teoria."
Hakim Bey faz também uma comparação da cultura das Z.A.T. com algumas culturas de povos ancestrais - a quebra da estrutura de um "núcleo" familiar - um "bando" que divide afinidades, não-pertencentes a uma hierarquia maior, mas um padrão horizontalizado de costumes, parentescos, contratos, afinidades espirituais etc.
"A morte de Deus", que de certo modo representou a descentralização do "projeto europeu", abriu a possibilidade de uma visão de mundo pós-ideológica e multifacetada, capaz de se mover, de forma "desenraizada", da filosofia para o mito tribal, da ciência natural para o Taoísmo. Capaz de enxergar, pela primeira vez através de olhos caleidoscópicos como os olhos de algum inseto dourado, cada faceta apresentando a concepção de outro mundo inteiramente diverso. Mas essa visão foi alcançada às custas de se viver numa época na qual a velocidade e o fetichismo da mercadoria criaram uma unidade tirânica e falsa que tende a ofuscar toda a diversidade cultural e toda a individualidade para que "todo lugar seja igual ao outro". Este paradoxo, cria também "ciganos", viajantes psíquicos guiados pelo desejo ou pela curiosidade, errantes com laços de lealdade frouxos, desligados de qualquer local ou tempo determinado, em busca da diversidade e aventura... Essa descrição engloba não apenas artistas e intelectuais classe x, como também trabalhadores imigrantes, refugiados, os "sem teto", turistas e aqueles que vivem em trailers - assim como pessoas que viajam na internet, ou aqueles que "viajaram demais", até nós mesmos, vivendo em nossos automóveis, em nossas férias, aparelhos de TV, livros, filmes, trocando de emprego, mudando de "estilo de vida", de religião... O nomadismo psíquico como uma tática, aquilo que Deleuze e Guattari metaforicamente chamam de "máquina de guerra", muda o paradoxo do modo passivo para um modo ativo. Os últimos espasmos de "Deus" no seu leito de morte vêm se arrastando por tanto tempo - nas formas do capitalismo, fascismo, comunismo etc - que ainda existe muita "destruição criativa" para ser executada por comando apaches pós-bakunianos e pós-nietzschianos - sentem tanto o desejo quanto a necessidade de Z.A.T., acampamentos de tendas negras sob as estrelas do deserto, inter-zonas, oásis fortificados escondidos nas rotas das caravanas secretas, trechos de selva e sertões liberados, áreas proibidas, mercados negros e bazares underground. Esses nômades orientam seu percurso por estrelas estranhas, que podem ser núcleos luminosos de dados no ciberespaço, ou, talvez, alucinações.
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CAOS // Terrorismo poético e outros crimes exemplares
"O Caos nunca morreu."
"O Caos é anterior a todos os princípios de ordem e entropia, não é nem um deus nem uma larva, seu desejos primais englobam e definem todas coreografias possíveis."
"Tudo na Natureza é perfeitamente real: não há absolutamente nada com o que se preocupar. As correntes da Lei não foram apenas quebradas, elas nunca existiram. Demônios nunca vigiaram estrelas."
"Ouça, foi isso que aconteceu: eles mentiram, venderam-lhe idéias de bem e mal, infundiram-lhe a desconfiança de seu próprio corpo e a vergonha pela sua condição de profeta do Caos."
"Não há transformação, revolução, luta, caminho. Você já é o monarca de sua própria pele."
"Agentes do Caos lançam olhares ardentes a qualquer coisa ou pessoa capaz de suportar ser testemunha de sua condição, sua febre por lux et voluptas. Estou desperto apenas no que amo e até o limite do terror – todo o resto é apenas mobília coberta e anestesia diária."
"Avatares do Caos agem como espiões, sabotadores, criminosos do Amor Louco, nem generosos nem egoístas, acessíveis como crianças, semelhantes a bárbaros, perseguidos por obsessões, desempregados, sexualmente perturbados, anjos terríveis, espelhos para a contemplação, olhos que lembram flores, piratas de todos os signos e sentidos."
"Arrombe apartamentos, mas, em vez de roubar, deixe objetos poético-terroristas. Sequestre alguém e o faça feliz."
"A reação do público ou choque-estético produzido pelo Terrorismo Poético tem de ser uma emoção menos tão forte quanto o terror – profunda repugnância, tesão sexual, temor supersticioso, súbitas revelações intuitivas, angustia dadaísta – não importa se o Terrorismo Poético é dirigido a apenas uma ou varias pessoas, se é “assinado” ou anônimo: se não mudar a vida de alguém (além da do artista), ele falhou."
"Não faça Terrorismo Poético para outros artistas, faça-o para aquelas pessoas que não perceberão (pelo menos não imediatamente) que aquilo que você fez é arte. Evite categorias artísticas reconhecíveis, evite politicagem, não argumente, não seja sentimental. Seja brutal, assuma riscos, vandalize apenas o que deve ser destruído, faça algo de que as crianças se lembrarão por toda a vida – mas não seja espontâneo a menos que a musa do Terrorismo Poético tenha se apossado de você."
"O Amor Louco não quer se alistar no exército de ninguém, não toma partido, não reclama, não explica, nunca vota e nunca paga impostos."
"Nem pense em escrever para Crianças Selvagens. Elas pensam em imagens - para elas a prosa é um código ainda não inteiramente digerido, não-confiável."
"Abraçar a desordem como fonte de estilo e como armazém de volúpia; nossa estética conspiratória, nossa espionagem lunática - assemelhando-se a uma criança de 10 anos."
"A Arte-Sabotagem é o lado negro do Terrorismo Poético. Criação através da destruição, mas não podem servir a nenhum partido ou niilismo, nem mesmo à própria arte. A Arte-Sabotagem vai além da paranóia, além da desconstrução."
"Esmague os símbolos do império, mas não o faça em nome de nada que não seja a busca do coração pela graça."
"Cada um dos que adentram no reino do Imã-de-si-próprio transforma-se num sultão de revelação inversa, num monarca da anulação."
"Cada consciência iluminada é um imperador, cuja única forma de reino é não fazer nada que possa atrapalhar a espontaneidade da Natureza."
"A Lei espera até que você tropece num modo de ser, uma alma diferente do padrão de "carne apropriada para consumo aprovada pelo sistema de inspeção federal" - e assim que você começa a agir de acordo com a natureza, a lei dos homens te agarra e te estrangula - portanto, não dê uma de mártir abençoado e liberal da classe média - aceite o fato de que você é um criminosos e esteja preparado para isso."
"PARADOXO: Adotar o Caos não é escorregar para a entropia, mas emergir para uma energia semelhante à das estrelas, uma graça espontânea - uma organização orgânica-espontânea."
"Depois do Caos vem o Eros - princípio da ordem implícito do vazio do UNO. O amor é estrutura, sistema, o único código não contaminado pela escravidão e pelo sono drogado."
"Não apenas sobreviva enquanto espera que a revolução de alguém ilumine suas idéias, não se aliste nos exércitos - aja como se já fosse livre, calcule as probabilidades, pule fora, lembre-se das regras - fume maconha. Todo homem tem sua própria vinha e sua fogueira - carregue seu passaporte mouro com orgulho, não fique parado no meio do fogo cruzado, proteja-se; mas arrisque-se, dance antes que seja calcificado."
"O Universo quer brincar. Aqueles que por ganância espiritual se recusam a jogar e escolhem a pura contemplação negligenciam sua humanidade - aqueles que evitam a brincadeira por causa de uma angústia tola, aqueles que hesitam, desperdiçam sua oportunidade de divindade - aqueles que fabricam para si máscaras cegas de idéias e vagam por aí à procura de uma prova para sua própria solidez acabam vendo o mundo através dos olhos de um morto."
"O Anarquismo Ontológico tende a discordar apenas da total quietude do Taoísmo. Em nosso mundo o Taos tem sido destituído por jovens "deuses", moralistas, falocratas, padres e banqueiros. Se a rebelião provar-se impossível, ao menos alguma guerra clandestina deve ser iniciada"
"É verdade que nesse mito alguns discípulos aspirantes podem receber o comando de arremessarem-se do alto das muralhas para a escuridão, mas é também verdade que alguns deles vão aprender a voar como feiticeiros."
"A feitiçaria funciona criando ao redor de si um espaço físico, psíquico com aberturas para um espaço de expressão sem barreiras - a metamorfose do lugar cotidiano numa esfera angelical. Isso envolve a manipulação de símbolos, tratados tanto quanto reais, irreais, como as palavras."
"Um poema deve agir como um feitiço e vice-versa. Os símbolos devem provocar incidentes como epifanias particulares"
"A QUALIDADE DA PERCEPÇÃO DEFINE O MUNDO"
BEY, Hakim. TAZ. Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad, 2001.
BEY, Hakim. Caos. Terrorismo poético e outros crimes exemplares. São Paulo: Conrad, 2003.
Muito bom o post sobre este pensador anarquista!
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