segunda-feira, 8 de maio de 2017

A Noção do Tempo em "Millennium Mambo"




Millenium Mambo (2001) é um filme que olha para as relações humanas do século XXI; O filme é um ensaio sobre memórias fragmentadas e nossa relação com o passado.  Seria possível viver o presente desacorrentando-o do passado e do futuro?

À partir de uma ficção que se passa em Taiwan, cujo a protagonista Vicky (Qi Shu), nos convida a olhar para seu passado, relembrando fatos ocorridos em sua vida cerca dez anos antecedidos ao tempo da narração, que provém de um olhar de Vicky em 2011 (sendo que o universo cênico está em 2001). A protagonista é uma jovem que vive com seu namorado Hao-Hao e se encontra em uma crise existencial e amorosa. Todavia os atos do filme se desenrolam de modo entrelaçado, fractal. E o filme acaba por acompanhar algumas memórias fragmentadas da protagonista sob uma perspectiva melancólica que ela lança sobre seu próprio passado.

            É possível notar que a câmera do diretor taiwanês Hou Hsiao-Hsien, neste que é um de seus mais aclamados filmes, fica invariavelmente posicionada em um único ponto do ambiente, e movimentando-se lentamente, criando com isso uma mise en scene objetiva e distanciada, concentrada no ambiente, na atmosfera dos espaços. Durante as cenas, a câmera não altera muito sua angulação, faz apenas pequenos movimentos para enquadrar seus personagens, mesmo que eles saiam do enquadramento, a câmera não se precipita, apenas os segue devagar, e os aguarda, nos deixando sentir o ambiente, fazendo utilização de recursos sonoros para termos informações do extra campo. 

Hou Hsiao-Hsien não faz utilização de uma decupagem rítmica no filme. Os únicos cortes são entre uma cena e outra, no desenrolar de cada ato, ou seja, todas as cenas são filmadas em planos sequência, de uma câmera que se movimenta lentamente pelos cenários. Diferente de um cinema que busca potencializar o trivial, o cinema de Hsiao-Hsien assume o tom de testemunha atônita. A sua câmera não é estática, não procura ser contemplativa, mas atua como um "despotencializador da histeria" da imagem, o que o crítico Eduardo Valente vai chamar de  um comportamento orgânico:
"Como em tantos outros filmes de Hou, uma enorme parcela da força do filme se deve à câmera de Mark Lee Ping-Bing, e à sua capacidade de passear pelos espaços de maneira a tornar incrivelmente orgânicos os movimentos dos personagens em cena, parecendo sempre responder a eles como se houvesse um cordão umbilical entre a câmera e o mundo diante dela." (p.143)
A câmera em Millennium Mambo poetiza suas cenas com um tom levemente melancólico, onde parece querer tirar uma certa potência impactante de suas memórias, tornando tudo muito natural, orgânico. Essa naturalidade com que as coisas acontecem é uma marca da obra. As memórias de Vicky são em sua maioria cenas cotidianas,  e o diretor as filma de modo a nos transpor para acompanhá-las como se sua câmera fosse o próprio olhar fragmentado da memória de Vicky na década seguinte; imagens perdidas em seu inconsciente, porém dotadas de uma qualificação emocional melancólica.

A protagonista de Millennium Mambo presa em seu relacionamento abusivo em um retrato social das relações humanas, quando estamos juntos porém separados: cada um no seu canto cuidando de sua vida. É como se a câmera do filme se colocasse como uma organização fractal de suas memórias – tudo acontece no filme de modo natural e repetitivo, e não é possível perceber quanto tempo se passa entre um ato e outro. Não é possível diagnosticar racionalmente os motivos que a leva a viver a vida que escolheu; poucas coisas são certas: ela quer se divertir e está confusa e vendo sua vida passar diante de seus olhos. É um filme sobre o passado de uma jovem, todavia, não temos informações sobre seu passado antes daquilo que é retratado. Enquanto as imagens estão presas no verão de 2001, o voice over, ou seja, suas considerações, seu discurso, está dez anos à frente. É notório o tom melancólico em suas colocações, tratando-se de um olhar para um passado distante que ela recorda mas que, em poucos momentos, com alguns amigos, a protagonista esboça uma leveza, mas nunca uma leveza plena, mas uma diversão movida pela matéria, pelo consumo. Todavia, na maior parte do tempo ela está angustiada e sozinha. Olhando para o nada, vendo o tempo passar. Mas não é culpa apenas da desorganização. Não é como se a vida fosse se encaixar perfeitamente no momento em que nos organizamos, mas há algo em nós, algo que nos cerca e da qual a natureza não sabemos, que torna nossas vidas confusas e faz do tempo, um opressor misterioso.





 O primeiro plano do filme, de Vicky descendo em um túnel escuro com luzes neon no teto, além de funcionar como um prólogo simbólico daquilo que vem a ser a obra, também é um apontamento imagético, daquilo que o diretor propôs como sua leitura da experiência humana na sociedade contemporânea: temos a tecnologia e a alta capacidade de consumo a nosso favor, porém estamos sozinhos, perdidos, vagando pelo tempo, tomando caminhos tortuosos, atormentados pela culpa e pela solidão mas movidos pelo desejo; por um hedonismo altamente consumista e egoísta. E o que resta? Inevitavelmente, ao olharmos para trás e nos depararmos com nossas memórias fragmentadas e perdidas, percebemos a potência do tempo. Não há caminho traçado, não há destino e não há mistério possível de ser desvendado por nós, mas apenas um caminho errôneo e duvidoso a ser percorrido; preenchido pelo tédio e pela culpa dos arrependimentos, ainda que possamos levar uma vida de isolamento (com encontros) voltada a estimular nosso próprio prazer para aliviarmos nossa dor existencial. Mas nos perdemos no tempo. Como me sentirei amanhã ao olhar para minha vida hoje? Como me sinto hoje ao olhar para minha vida ontem?




Referências: Hou Hsiao-Hsien e o cinema de memórias fragmentadas. Rio de Janeiro: CCBB RJ, 2010


Nenhum comentário:

Postar um comentário