sexta-feira, 24 de junho de 2016

O menino que queria encontrar o fim do mundo



Filme completo legendado em português

A proposta deste ensaio é analisar e refletir sobre a primeira parte do longa-metragem “Desejo“, realizado em 1958, do diretor tcheco Vojtech Jasny. Esse longa é composto por quatro partes interdependentes entre si, onde não há continuação temporal ou narrativa. Não se tratam dos mesmos personagens, mas de diferentes corpos lidando com diferentes condições humanas. Há uma abordagem acerca de certos temas que fazem uma ligação entre essas quarto partes. Todavia, de qualquer modo, vou me ater a pensar apenas nessa primeira parte, “O menino que queria encontrar o fim do mundo“, desconectada do restante do filme.

"Desejo"
”Quatro estações, quatro períodos da vida humana”

Acredito que após apresentar as reflexões e observações, tentando dialogar com a teoria psicanalítica, ficará mais transparente a minha intenção de buscar um conceito que acredito estar presente no filme, e que parece ser o ponto de partida para  toda uma construção de personagens e da narrativa. Essas observações me levam a crer que o diretor Jasny nos deixou pistas para entendermos que ele relaciona a idéia da estação primavera como uma certa metáfora para o início da vida e um período específico da infância que ele ligou mais acentuadamente: a fase fálica e a estrutura edipiana.
O filme abre com alguns garotos correndo em um campo aberto junto com vários pássaros. O desejo dos garotos frente a uma imagem, uma paisagem que gera uma empolgação neles. Freud (1929 p 21) no livro “A Interpretação dos Sonhos“ chega a fazer uma reflexão sobre a idéia do órgão feminino ser representado por uma paisagem. Como no trecho de um sonho de uma paciente “Em frente à igreja uma trilha levava até a colina; de ambos os lados cresciam relva e moitas cerradas, que se iam tornando cada vez mais espessas e, no alto da colina, transformavam-se num bosque comum.
Os garotos correm atrás da imagem que ilusoriamente os faz criar uma realidade, “estariam chegando no fim do mundo“.

Esses garotos, supostamente entorno dos quatro ou cinco anos, estariam passando pela fase fálica. A descoberta da sexualidade. Neste momento a criança questiona sobre o mundo e sobre a diferença sexual. Essa fase é parte do processo que desencadeia no complexo de édipo e na castração. Logo, se o garoto se encontra em uma fase de sua vida em que ele está assimilando a cultura está passando pelo processo de instauração do Superego. Anteriormente a isso, a criança é movida apenas pelas suas pulsões, ainda não conseguindo assimilar normas e sem a noção de culpa.

“Pois é possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma `compulsão à repetição`, procedente dos impulsos instintuais e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos – uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco, e ainda muito claramente expressa nos impulsos das crianças pequenas;“ (FREUD, 1925, p. 297)


Investigação sexual infantil – a pulsão do saber. A busca pelo saber: a questão “onde posso encontrar o fim do mundo?” é encaminhada a um velho (quem se pressupõem  que tenha o saber) e a resposta: em lugar nenhum. “Volte para casa você é um bom menino“. Na vida adulta o indivíduo descobre que o fim do mundo é a morte.


"Ao mesmo tempo em que a vida sexual da criança chega a sua primeira florescência, entre três e cinco anos, também se inicia nela a atividade que se inscreve na pulsão do saber ou de investigar. Essa pulsão não pode ser computada entre os componentes pulsionais elementares, nem exclusivamente subordinada à sexualidade. Sua atividade corresponde, de um lado, a uma forma sublimada de dominação e, de outro, trabalha com a energia escopofílica. Suas relações com a vida sexual entretanto, são particularmente significativas, já que constatamos pela psicanálise que, na criança, a pulsão de saber é atraída, de maneira insuspeitadamente precoce e inesperadamente intensa, pelos problemas sexuais, e talvez seja até despertada por eles." (FREUD, 1925, p.118 )

Na vida real, ao ser questionado, o pai do garoto encontra uma resposta para sua pergunta: de onde vem os bebês? Eles nascem de um ovo, como os animais – a idéia da sexualidade fica de fora.

"A investigaçãoo sexual desses primeiros anos na infância é sempre feita na solidão; significa um primeiro passo para a orientação autônoma no mundo e estabelece um intenso alheamento da criança frente às pessoas de seu meio que antes gozavam de sua total confiança." (FREUD, 1925, p. 120)

É interessante perceber que a figura do pássaro está presente em quase todo o filme. É possível fazer uma relação entre a imagem do pássaro, com a idéia do pênis no imaginário infantil. E é exatamente essa poética com o pássaro que cola encima da idéia de que o garoto está passando pela fase fálica. Afinal se é esse justamente o momento da descoberta da sexualidade, com ela vem aí também a questão da diferenciação entre aquele que “tem“ (e o medo de perder), e aquele que “não tem“ (uma suposta falta por isso) – a idéia da potência relacionada ao falo e a divisão entre os campos do feminino e masculino, ambos relacionados a “funções“ e lugares diferentes: há uma cena onde o garoto protagonista, com as pulsões à flor da pele, tenta tomar as flores de uma garotinha, lembrando aquela idéia que Freud falou da forma sublimada de dominação, enquanto que “fragilmente“ a menina tem de ser defendida por outro garoto.
O sonho mostra o simbólico. Alguns elementos da vida cotidiana estão ali representados com uma certa distorção da realidade. Como diz Freud (1925, p.26) em  “A Interpretação dos Sonhos” acerca do conteúdo presente no inconsciente é extremamente notável, por certo, que o simbolismo já desempenhe seu papel no sonho de uma criança de quatro anos. Mas isso é a regra, e não a exceção. Pode-se afirmar com segurança que os sonhadores dispõem do simbolismo desde o princípio. E esse conteúdo teria uma relação com aquilo que cerca o garoto no seu dia-dia: “no tocante às conexões com o dia anterior, que surgiram com certa insistência no conteúdo onírico e foram reproduzidas pelo sonhador sem qualquer dificuldade“ (idem, p.23). Imagens que fazem parte de seu universo estão preenchendo seu sonho, porém de maneira distorcida. O modo como o pai acompanha o filho é infantilizado. À grosso modo, alguns poucos elementos constroem o imaginário do garoto: os enormes lençóis brancos pendurados nos varais, o buquê de flores e os pássaros. Esse momento que constitui algo próximo de um ritual de passagem. Sob aspecto do figurino, por exemplo, o garoto e o pai vestem a mesma roupa. O garoto toma o pai como ideal de identificação, irá imitá-lo, querer ser como ele.
 O diretor fez uso de poucos elementos materiais para construir o sonho do garoto. O modo como Jasny usa o lençol é uma espécie de “entrada“ para um lugar ritualístico. Há um momento em que o garoto, na empolgação, quase atravessa a “porta“ para esse outro lado, mas o pai o puxa pela perna e o traz para trás do lençol. O pai então pega um buquê de flores e, como em uma espécie de “gesto mágico“ toca o buquê ,  como se fosse uma mistura de varinha mágica com a idéia de tocar uma campainha em alguma porta – magicamente os lençóis se abrem. Surge então a figura daquele senhor, do qual se supõem que há algo de sábio, acompanhado de outros dois garotos, todos trajando uma espécie de toga: o velho tem uma bengala na mão, o garoto da esquerda tem um ovo gigante e o da direita um pássaro pousado em seu dedo.
Outra das cenas mais tocantes do filme é o desfecho da estória, quando o garoto vai finalmente conhecer sua irmãzinha. O garoto acorda de seu sono e vai correndo empolgado buscar o que?  Exatamente aquele buquê de flores, aquele objeto que ocupou um lugar de importância no imaginário do garoto, porém agora, ao contrário do sonho, ao encontrar o pai prestes ao momento da “cerimônia“ a coisa acontece de modo muito diferente. O garoto aparece todo sujo de terra e com o buquê de flores escondido nas costas. O pai nem toma conhecimento do buquê de flores e dá um tapa no rosto do garoto para reprimi-lo por estar sujo de terra.  Aparece aí também talvez a idéia da culpa, pois o garoto então chora, e no mesmo gesto, revela ao pai as flores, como quem pede desculpa por um erro que cometeu. A figura do pai representa culturalmente a figura da punição, e uma punição que visa corrigir o indivíduo; uma forma agressiva de aprendizado. O pai provavelmente aprendeu assim com quem o  criou e foi assim que ele aprendeu a ser um homem, e agora, ele quer ensinar o seu menino a ser homem, à uma maneira que provavelmente foi a única que ele conheceu.
 Há uma ligação com a idéia da formação do superego com a norma e a punição. É mais uma ligação que reforça o conceito da idéia do garoto que está na fase fálica. Na estrutura edipiana a criança toma um dos pais como objeto de desejo e o outro como objeto de identificação. O garoto está dividido, e enquanto o pai, é ao mesmo tempo uma contradição para ele, uma espécie de amigão (ideal de identificação) e uma espécie de punidor; por outro lado, a mãe lhe fornece outra posição que não coincide com a agressividade masculina, ela diz: “você é meu doce menino”. Fica no ar a idéia de que, ainda que de modo opaco, estaríamos diante de uma estrutura edipiana.
A partir de tudo que foi discutido, acredito que seja perceptível a intenção de querer analisar essa obra relacionando seu conceito com o olhar da psicanálise. Cabem muito mais interpretações e contribuições no que diz respeito a análise desse filme, até pelo fato de eu ter me reservado a pensar somente na primeira das quatro estações abordadas no filme.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
Obras completas Freud [versão brasileira edição de 1925] – Volumes V(A Interpretação dos Sonhos); VII (Os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade [O estranho]), XVII (História de Uma Neurose Infantil e Outros Trabalhos)

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