"Foi em 1968 que eles chegaram." Conta Ignácio no capítulo "Espectador passa a ser ator: O teatro atual" , relatando suas experiências e reflexões de uma viagem a Cuba em 1978, feita com um grupo de amigos (entre eles Chico Buarque) - e sobre o GTE - Grupo Teatral Escambray, movimento que proporcionou uma verdadeira revolução cultural e teatral sessentista no interior de Cuba.
A idéia do conjunto era clara: criação coletiva para uma comunicação coletiva. Usar o povo como fonte, tendo em mente os interesses e o desenvolvimento do povo. E fazer com que o povo fosse o criador do seu próprio teatro. Corrieri: "O teatro devia ser um fator vivo, instrumento de discussão e confrontação coletiva dos problemas do público ao qual ele se dirige." Era preciso convivência com o homem da região, sem a qual é impossível a percepção direta e vivenciada dos conflitos sociais que o conformam. "A necessidade de abordar seriamente a problemática desde lugar nos obrigou a estudar matérias que não estão nos currículos normais de teatro: elementos de sociologia, psicologia, tecnicas de investigação e pesquisa". "[...] Por isso, nossa primeira tarefa foi o conhecimento da zona onde íamos trabalhar, dos problemas de seus habitantes, seu presente, passado."
Sergio Corrieri(diretor do GTE) explica que tudo nasceu de uma insatisfação. Da descoberta feita de que o teatro estava sendo uma arte inútil, não participante: "Os que iniciariam esta experiência não saíram de uma só companhia. Ao contrário, vinham de diversas empresas profissionais que atuavam em Havana. O que nos motivou a ir para Escambray foi o descontentamento com o teatro, do modo como era praticado. Primeiro, o público, era bastante reduzido. O peso e a influência do teatro na vida nacional eram ínfimos. Os dispositivos teatrais continuavam encravados nos lugares tradicionais, os bairros aristocráticos da capital. Acima de tudo, no entanto, sentíamos que o teatro não cooperava com as transformações que estavam ocorrendo em Cuba. Tínhamos mudanças imensas nos planos político, econômico e social. o repertório era pálido, magro desfigurado. Descobríamos uma contradição entre nossa atitude como cidadãos e as responsabilidades e compromissos que sentíamos como homens da Revolução. Parecia que a nossa profissão não estava à mesma altura dos outros campos de atividade. Víamos a enorme massa de cubanos que não tinha oportunidade de assistir o teatro. E estes cubanos, eles sim, eram os verdadeiros protagonistas da Revolução. Eles a tinham feito. Eles a consolidavam. Eles, principalmente, sofriam os efeitos dessa reforma, sentiam na pele os conflitos que comporta um processo revolucionário. A nossa ambição era que o teatro desempenhasse dentro desta nova sociedade um papel ativo. No começo pensávamos numa ruptura com a maneira convencional de fazer teatro. Depois, verificamos que era uma ruptura e uma continuidade. Não nascemos com o Grupo Escambray, nem nos improvisamos de repente. Arrancamos a partir do que éramos, do que tínhamos aprendido em teatro. As armas eram aquelas que adquirimos na forma tradicional. Armas que não nos prejudicaram. Ao contrário, foram elas que nos permitiram trabalhar, pois faziam a base. Portanto, o Grupo Escambray é uma continuidade enriquecida".
A população do Escambray tinha sofrido, era primitiva, e o governo necessitava desenvolver ali um trabalho intenso. Este "tudo por fazer" excitou aqueles jovens que chegavam de Havana. Eles também podiam contribuir para a Revolução - o contato direto dos atores com a vida, hábitos e costumes do Escambray, transformando a utilização dos valores culturais locais.
Haviam pessoas que questionavam que esse novo teatro preocupava-se apenas com a agitação política. "É uma atitude correta? Ou o teatro deve ser apenas o produtor de alguns momentos de prazer estético?" pergunta Rosa Ilena Boudet em um artigo para revista "Bohemia".
"O teatro não deve ser um fim em si, nem pode ser apenas o agente temporal de um prazer estético" responde Sergio Corrieri, que aparece na foto abaixo.
Não vamos nos esquecer que estamos abordando um grupo conceitual, em uma época bem específica: o final dos anos 60. A maioria dos participantes do grupo eram jovens dos teatros profissionais de Havana ou da Escola de Belas Artes, dos cursos de arte dramática. O acampamento foi erguido por eles mesmos. Quer dizer: diretores, atores, escritores ergueram, fizeram alicerces, levantaram paredes, fecharam telhados. Com as próprias mãos. O que dá um sentido muito forte à coisa. Existem raízes de suor e uma ligação sanguínea entre gente e construções. Como disse Corrieri "Oito meses de trabalho, vinte mil horas de trabalho físico na construção disto tudo. A pedagogia da Revolução é contundente como um aríete: hoje sabemos o que custa edificar. Agora, podemos apreciar muito mais o esforço dos pedreiros e a dívida que temos para com eles. Foi uma tarefa longa e difícil. Jornadas de dez ou doze horas, compartilhadas por homens e mulheres. Não existe parede, teto, coluna, fossa, jardim onde não intervimos fisicamente. Sabíamos que era uma tarefa insólita. Pela primeira vez em nosso país um grupo de artistas construía seu centro de trabalho, seus alojamentos e instalações."
(O acampamento tem residências, sala de ensaios, biblioteca, arquivo, almoxerifado, refeitório, sala de música) Ele representou a instalação definitiva do grupo na região Escambray.
No início adaptaram-se obras clássicas, farsas medievais, contos, peças de Brecht. A cada espetáculo, seguia-se ampla pesquisa, visitando-se casa por casa e interrogando-se todos que tinham assistido à representação. Comprovava-se assim a eficácia ou não do espetáculo, as reformas que ele deveria sofrer, se o tipo de linguagem estava correto. Ao mesmo tempo, enriquecia-se o texto com fatos novos, extraídos da própria realidade. "Como a temática da obra tinha muito a ver com a vida do espectador, este, ao referir-se a ela, necessariamente falava de si mesmo, de sua origem, aspirações, visão de vida, deixando entrever suas necessidades culturais e o sentido de transformação destas necessidades a cada impulso das mudanças revolucionárias"
Todo o material de investigação era discutido grupalmente. Nestes debates, configuram-se hipóteses que podem via a ser fios centrais das obras. Estas hipóteses sofrem novo período de confrontação e investigação. "A obra", alegam, "é uma hipótese que se confirma ou se modifica em contato com o público"
"Parece-me que o Grupo de Teatro Escambray conseguiu realizar melhor que ninguém o conceito de teatro aberto, uma vez que suas peças só se completam com a participação efetiva do público. Este é que determina finais e conclusões." afirma Loyola Brandão.
É importante saber que o público a quem este teatro se dirige não tinha, anteriormente, nenhum contato com a relidade teatral. Não conhecia portanto nenhuma "regra". Não foi preciso "reformar"a platéia, e sim formá-la. Ela aceitava as regras impostas pelos criadores, transformando-as e enriquecendo-as.
Há uma das peças, "El Juicio", de Gilda Hernández(subdiretora), que só pode ser encenada com a colaboração da assistência. O espetáculo se inicia com a indicação de alguns juízes, escolha que é feita pelos camponeses da platéia. O tema da peça se refere ao caso de Leandro Gonzales, camponês que participou da contra-revolução, foi preso, julgado e posteriormente reabilitado. A primeira parte da peça é formada por uma série de depoimentos(testemunhos) de atores. Em seguida, começa o julgamento de Leandro. Aí os espectadores intervêm, porque eles são os juízes. É o público quem escreve a segunda parte da obra. Os juízes podem, no transcorrer da peça, opinar, interromper, discutir com os atores, reclamar dados que não estão claros no texto. O conceito dessa obra em si, seria fazer com que a população aceite de volta alguns contra-revolucionários reabilitados; tentar ajudar na reintegração da comunidade.
O GTE abriu caminho para uma série de grupos trabalharem na mesma linha, em meios diferentes como La Yaya, Conjunto Dramatico do Oriente e o Teatro de Participação Popular.
LOYOLA BRANDÃO, Ignácio. Cuba de Fidel. São Paulo, 1978
Maravilha! A história do grupo pode ser vista como uma chave para conseguirmos realizar muitas dos nossos desejos. Na nossa sociedade o grupo e o coletivo conseguem muito quando buscam juntos criarem e realizarem pelas próprias mãos.
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