Millenium Mambo (2001) é um filme que olha para as
relações humanas do século XXI; O filme é um ensaio sobre memórias fragmentadas
e nossa relação com o passado. Seria
possível viver o presente desacorrentando-o do passado e do futuro?
À
partir de uma ficção que se passa em Taiwan, cujo a protagonista Vicky (Qi Shu),
nos convida a olhar para seu passado, relembrando fatos ocorridos em sua vida
cerca dez anos antecedidos ao tempo da narração, que provém de um olhar de
Vicky em 2011 (sendo que o universo cênico está em 2001). A protagonista é uma
jovem que vive com seu namorado Hao-Hao e se encontra em uma crise existencial
e amorosa. Todavia os atos do filme se desenrolam de modo entrelaçado, fractal.
E o filme acaba por acompanhar algumas memórias fragmentadas da protagonista
sob uma perspectiva melancólica que ela lança sobre seu próprio passado.
É possível notar que a câmera do
diretor taiwanês Hou Hsiao-Hsien, neste que é um de seus mais aclamados filmes,
fica invariavelmente posicionada em um único ponto do ambiente, e movimentando-se lentamente,
criando com isso uma mise en scene objetiva e distanciada, concentrada
no ambiente, na atmosfera dos espaços. Durante as cenas, a câmera não altera
muito sua angulação, faz apenas pequenos movimentos para enquadrar seus
personagens, mesmo que eles saiam do enquadramento, a câmera não se precipita,
apenas os segue devagar, e os aguarda, nos deixando sentir o ambiente, fazendo utilização de recursos sonoros para termos informações do extra campo.
Hou
Hsiao-Hsien não faz utilização de uma decupagem rítmica no filme. Os únicos
cortes são entre uma cena e outra, no desenrolar de cada ato, ou seja, todas as
cenas são filmadas em planos sequência, de uma câmera que se movimenta
lentamente pelos cenários. Diferente de um cinema que busca potencializar o trivial, o cinema de Hsiao-Hsien assume o tom de testemunha atônita. A sua câmera não é estática, não procura ser contemplativa, mas atua como um "despotencializador da histeria" da imagem, o que o crítico Eduardo Valente vai chamar de um comportamento orgânico:
"Como em tantos outros filmes de Hou, uma enorme parcela da força do filme se deve à câmera de Mark Lee Ping-Bing, e à sua capacidade de passear pelos espaços de maneira a tornar incrivelmente orgânicos os movimentos dos personagens em cena, parecendo sempre responder a eles como se houvesse um cordão umbilical entre a câmera e o mundo diante dela." (p.143)A câmera em Millennium Mambo poetiza suas cenas com um tom levemente melancólico, onde parece querer tirar uma certa potência impactante de suas memórias, tornando tudo muito natural, orgânico. Essa naturalidade com que as coisas acontecem é uma marca da obra. As memórias de Vicky são em sua maioria cenas cotidianas, e o diretor as filma de modo a nos transpor para acompanhá-las como se sua câmera fosse o próprio olhar fragmentado da memória de Vicky na década seguinte; imagens perdidas em seu inconsciente, porém dotadas de uma qualificação emocional melancólica.
A protagonista de
Millennium Mambo presa em seu
relacionamento abusivo em um
retrato social das relações humanas, quando estamos juntos porém separados:
cada um no seu canto cuidando de sua vida. É como se a câmera do filme se
colocasse como uma organização fractal de suas memórias – tudo acontece no
filme de modo natural e repetitivo, e não é possível perceber quanto tempo se
passa entre um ato e outro. Não é possível diagnosticar racionalmente os
motivos que a leva a viver a vida que escolheu; poucas coisas são certas: ela
quer se divertir e está confusa e vendo sua vida passar diante de seus olhos. É
um filme sobre o passado de uma jovem, todavia, não temos informações sobre seu
passado antes daquilo que é retratado. Enquanto as imagens estão presas no
verão de 2001, o voice over, ou seja,
suas considerações, seu discurso, está dez anos à frente. É notório o tom melancólico
em suas colocações, tratando-se de um olhar para um passado distante que ela
recorda mas que, em poucos momentos, com alguns amigos, a protagonista esboça
uma leveza, mas nunca uma leveza plena, mas uma diversão movida pela matéria, pelo consumo.
Todavia, na maior parte do tempo ela está angustiada e sozinha. Olhando para o
nada, vendo o tempo passar. Mas não é culpa apenas da desorganização. Não é
como se a vida fosse se encaixar perfeitamente no momento em que nos
organizamos, mas há algo em nós, algo que nos cerca e da qual a natureza não sabemos, que torna nossas
vidas confusas e faz do tempo, um opressor misterioso.
O primeiro plano do filme, de Vicky descendo
em um túnel escuro com luzes neon no teto, além de funcionar como um prólogo simbólico
daquilo que vem a ser a obra, também é um apontamento imagético, daquilo que o
diretor propôs como sua leitura da experiência humana na sociedade
contemporânea: temos a tecnologia e a alta capacidade de consumo a nosso favor,
porém estamos sozinhos, perdidos, vagando pelo tempo, tomando caminhos
tortuosos, atormentados pela culpa e pela solidão mas movidos pelo desejo; por
um hedonismo altamente consumista e egoísta. E o que resta? Inevitavelmente, ao
olharmos para trás e nos depararmos com nossas memórias fragmentadas e
perdidas, percebemos a potência do tempo. Não há caminho traçado, não há
destino e não há mistério possível de ser desvendado por nós, mas apenas um
caminho errôneo e duvidoso a ser percorrido; preenchido pelo
tédio e pela culpa dos arrependimentos, ainda que possamos levar uma vida de
isolamento (com encontros) voltada a estimular nosso próprio prazer para
aliviarmos nossa dor existencial. Mas nos perdemos no tempo. Como me sentirei
amanhã ao olhar para minha vida hoje? Como me sinto hoje ao olhar para minha
vida ontem?
Referências: Hou Hsiao-Hsien e o cinema de memórias fragmentadas. Rio de Janeiro: CCBB RJ, 2010