Filme completo legendado em português
A proposta deste ensaio é analisar e refletir sobre a primeira parte do longa-metragem “Desejo“, realizado em 1958, do diretor tcheco Vojtech Jasny. Esse longa é composto por quatro partes interdependentes entre si, onde não há continuação temporal ou narrativa. Não se tratam dos mesmos personagens, mas de diferentes corpos lidando com diferentes condições humanas. Há uma abordagem acerca de certos temas que fazem uma ligação entre essas quarto partes. Todavia, de qualquer modo, vou me ater a pensar apenas nessa primeira parte, “O menino que queria encontrar o fim do mundo“, desconectada do restante do filme.
"Desejo" |
”Quatro estações, quatro períodos da vida humana” |
Acredito que após
apresentar as reflexões e observações, tentando dialogar com a teoria
psicanalítica, ficará mais transparente a minha intenção de buscar um conceito
que acredito estar presente no filme, e que parece ser o ponto de partida para toda uma construção de personagens e da
narrativa. Essas observações me levam a crer que o diretor Jasny nos deixou pistas
para entendermos que ele relaciona a idéia da estação primavera como uma certa
metáfora para o início da vida e um período específico da infância que ele
ligou mais acentuadamente: a fase fálica e a estrutura edipiana.
O filme abre com
alguns garotos correndo em um campo aberto junto com vários pássaros. O desejo
dos garotos frente a uma imagem, uma paisagem que gera uma empolgação neles. Freud
(1929 p 21) no livro “A Interpretação dos Sonhos“ chega a fazer uma reflexão
sobre a idéia do órgão feminino ser representado por uma paisagem. Como no
trecho de um sonho de uma paciente “Em
frente à igreja uma trilha levava até a colina; de ambos os lados cresciam
relva e moitas cerradas, que se iam tornando cada vez mais espessas e, no alto
da colina, transformavam-se num bosque comum“.
Os garotos correm
atrás da imagem que ilusoriamente os faz criar uma realidade, “estariam
chegando no fim do mundo“.
Esses garotos,
supostamente entorno dos quatro ou cinco anos, estariam passando pela fase
fálica. A descoberta da sexualidade. Neste momento a criança questiona sobre o
mundo e sobre a diferença sexual. Essa fase é parte do processo que desencadeia
no complexo de édipo e na castração. Logo, se o garoto se encontra em uma fase de
sua vida em que ele está assimilando a cultura está passando pelo processo de
instauração do Superego. Anteriormente a isso, a criança é movida apenas pelas
suas pulsões, ainda não conseguindo assimilar normas e sem a noção de culpa.
“Pois é possível reconhecer, na mente
inconsciente, a predominância de uma `compulsão à repetição`, procedente dos
impulsos instintuais e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos
– uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de
prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco, e
ainda muito claramente expressa nos impulsos das crianças pequenas;“ (FREUD,
1925, p. 297)
Investigação sexual
infantil – a pulsão do saber. A busca pelo saber: a questão “onde posso encontrar o fim do mundo?” é
encaminhada a um velho (quem se pressupõem
que tenha o saber) e a resposta: em lugar nenhum. “Volte para casa você é um bom menino“. Na vida adulta o indivíduo
descobre que o fim do mundo é a morte.
"Ao mesmo tempo em que a vida sexual da
criança chega a sua primeira florescência, entre três e cinco anos, também se
inicia nela a atividade que se inscreve na pulsão do saber ou de investigar.
Essa pulsão não pode ser computada entre os componentes pulsionais elementares,
nem exclusivamente subordinada à sexualidade. Sua atividade corresponde, de um
lado, a uma forma sublimada de dominação e, de outro, trabalha com a energia
escopofílica. Suas relações com a vida sexual entretanto, são particularmente
significativas, já que constatamos pela psicanálise que, na criança, a pulsão
de saber é atraída, de maneira insuspeitadamente precoce e inesperadamente
intensa, pelos problemas sexuais, e talvez seja até despertada por eles." (FREUD, 1925, p.118 )
Na vida real, ao ser
questionado, o pai do garoto encontra uma resposta para sua pergunta: de onde
vem os bebês? Eles nascem de um ovo, como os animais – a idéia da sexualidade
fica de fora.
"A investigaçãoo sexual desses primeiros
anos na infância é sempre feita na solidão; significa um primeiro passo para a
orientação autônoma no mundo e estabelece um intenso alheamento da criança
frente às pessoas de seu meio que antes gozavam de sua total confiança." (FREUD,
1925, p. 120)
É interessante
perceber que a figura do pássaro está presente em quase todo o filme. É
possível fazer uma relação entre a imagem do pássaro, com a idéia do pênis no
imaginário infantil. E é exatamente essa poética com o pássaro que cola encima
da idéia de que o garoto está passando pela fase fálica. Afinal se é esse
justamente o momento da descoberta da sexualidade, com ela vem aí também a
questão da diferenciação entre aquele que “tem“ (e o medo de perder), e aquele
que “não tem“ (uma suposta falta por
isso) – a idéia da potência relacionada ao falo e a divisão entre os campos do
feminino e masculino, ambos relacionados a “funções“ e lugares diferentes: há
uma cena onde o garoto protagonista, com as pulsões à flor da pele, tenta tomar
as flores de uma garotinha, lembrando aquela idéia que Freud falou da forma sublimada de dominação, enquanto
que “fragilmente“ a menina tem de ser defendida por outro garoto.
O sonho mostra o
simbólico. Alguns elementos da vida cotidiana estão ali representados com uma
certa distorção da realidade. Como diz Freud (1925, p.26) em “A Interpretação dos Sonhos” acerca do conteúdo
presente no inconsciente é
extremamente “notável,
por certo, que o simbolismo já desempenhe seu papel no sonho de uma criança de
quatro anos. Mas isso é a regra, e não a exceção. Pode-se afirmar com segurança
que os sonhadores dispõem do simbolismo desde o princípio“. E esse conteúdo teria uma relação com
aquilo que cerca o garoto no seu dia-dia: “no tocante às conexões com o dia anterior, que surgiram com certa
insistência no conteúdo onírico e foram reproduzidas pelo sonhador sem qualquer
dificuldade“ (idem, p.23). Imagens que fazem parte de seu universo
estão preenchendo seu sonho, porém de maneira distorcida. O modo como o pai
acompanha o filho é infantilizado. À grosso modo, alguns poucos elementos constroem
o imaginário do garoto: os enormes lençóis brancos pendurados nos varais, o
buquê de flores e os pássaros. Esse momento que constitui algo próximo de um
ritual de passagem. Sob aspecto do figurino, por exemplo, o garoto e o pai
vestem a mesma roupa. O garoto toma o pai como ideal de identificação, irá
imitá-lo, querer ser como ele.
O diretor fez uso de poucos elementos
materiais para construir o sonho do garoto. O modo como Jasny usa o lençol é
uma espécie de “entrada“ para um lugar ritualístico. Há um momento em que o
garoto, na empolgação, quase atravessa a “porta“ para esse outro lado, mas o
pai o puxa pela perna e o traz para trás do lençol. O pai então pega um buquê
de flores e, como em uma espécie de “gesto mágico“ toca o buquê , como se fosse uma mistura de varinha mágica
com a idéia de tocar uma campainha em alguma porta – magicamente os lençóis se
abrem. Surge então a figura daquele senhor, do qual se supõem que há algo de
sábio, acompanhado de outros dois garotos, todos trajando uma espécie de toga:
o velho tem uma bengala na mão, o garoto da esquerda tem um ovo gigante e o da
direita um pássaro pousado em seu dedo.
Outra das cenas mais
tocantes do filme é o desfecho da estória, quando o garoto vai finalmente
conhecer sua irmãzinha. O garoto acorda de seu sono e vai correndo empolgado
buscar o que? Exatamente aquele buquê de
flores, aquele objeto que ocupou um lugar de importância no imaginário do
garoto, porém agora, ao contrário do sonho, ao encontrar o pai prestes ao
momento da “cerimônia“ a coisa acontece de modo muito diferente. O garoto
aparece todo sujo de terra e com o buquê de flores escondido nas costas. O pai nem
toma conhecimento do buquê de flores e dá um tapa no rosto do garoto para
reprimi-lo por estar sujo de terra. Aparece aí também talvez a idéia da culpa,
pois o garoto então chora, e no mesmo gesto, revela ao pai as flores, como quem
pede desculpa por um erro que cometeu. A figura do pai representa culturalmente
a figura da punição, e uma punição que visa corrigir o indivíduo; uma forma
agressiva de aprendizado. O pai provavelmente aprendeu assim com quem o criou e foi assim que ele aprendeu a ser um
homem, e agora, ele quer ensinar o seu menino a ser homem, à uma maneira que
provavelmente foi a única que ele conheceu.
Há uma ligação com a idéia da
formação do superego com a norma e a punição. É mais uma ligação que reforça o
conceito da idéia do garoto que está na fase fálica. Na estrutura edipiana a
criança toma um dos pais como objeto de desejo e o outro como objeto de
identificação. O garoto está dividido, e enquanto o pai, é ao mesmo tempo uma
contradição para ele, uma espécie de amigão (ideal de identificação) e uma
espécie de punidor; por outro lado, a mãe lhe fornece outra posição que não
coincide com a agressividade masculina, ela diz: “você é meu doce menino”. Fica no ar a idéia de que, ainda que de
modo opaco, estaríamos diante de uma estrutura edipiana.
A partir de tudo que
foi discutido, acredito que seja perceptível a intenção de querer analisar essa
obra relacionando seu conceito com o olhar da psicanálise. Cabem muito mais
interpretações e contribuições no que diz respeito a análise desse filme, até
pelo fato de eu ter me reservado a pensar somente na primeira das quatro
estações abordadas no filme.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRAFICAS
Obras
completas Freud [versão brasileira edição de 1925] – Volumes V(A Interpretação
dos Sonhos); VII (Os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade [O estranho]),
XVII (História de Uma Neurose Infantil e Outros Trabalhos)